Crônicas

Ato falho

Pela frestas da veneziana, Niclas pode ver que já tinha amanhecido. Sentiu um certo alívio, pois assim poderia se livrar dos pensamentos que não o deixaram dormir em paz. Por outro lado, iniciar o dia significava enfrentar o problema que havia sido criado na véspera. Sentia o corpo cansado e a cabeça pesada.

Sentou-se na cama, disposto a traçar seu plano de ação. Ao pegar os óculos na mesa de cabeceira, seus olhos se iluminaram ao ver a edição resumida do Iching, livro que costumava consultar antes das grandes decisões. Sim, a resposta virá dele! Pensou.

Concentrado em sua pergunta, fechou os olhos e abriu na nágina sorteada. O hexagrama chinês SUI apareceu e, com ele, o conselho do oráculo: “Há uma mensagem latente de adaptação às exigências que o momento traz consigo. É inútil criar uma falsa resistência, que não levará a lugar nenhum. A melhor atitude é ser condescendente inicialmente e, em seguida, adotar uma postura flexível e inteligente.”

Niclas se jogou de costas na cama, a cabeça em redemoinho. Adaptação? Atitude condescendente? Postura flexível? Mas o que é isso oráculo… está jogando a favor ou contra?

Resignado, resolveu colocar no papel o que deveria falar, para ver se conseguiria seguir exatamente o conselho recebido. A todo momento repetia o mantra: “Inútil criar uma falsa resistência!” Sabia que o sucesso iria depender da entrada inicial, portanto tinha que medir bem as palavras.

Primeiro rascunho: “Acho que está na hora de termos uma conversa franca sobre o que me falou ontem. Queria que entendesse minha posição.” Não, não, não… pensou. Assim já sinalizo que minha posição é contrária. Onde está a atitude condescendente?

Partiu para a segunda tentativa: “Gostaria que pensasse melhor sobre o que me propôs ontem, acho que tenho uma alternativa melhor.” Releu e riscou imediatamente: Cadê a postura flexivel? Já estou partindo para o convencimento logo de início, nada inteligente… Esfregando os olhos, Niclas escreveu a terceira versão: “Estou te ligando porque nem consegui dormir depois da sua proposta de ontem. Não queria que pensasse que sou resistente, quero muito que me de o seu ponto de vista e estou disposto a negociar.” Analisou a frase, identificando os pontos que seguiam o conselho do oráculo: “Mostra não resistência, é condescendente, se propõe a ser flexível. É por aí!”. Tomou um copo d´agua, e pegou o celular.

— Estou te ligando, porque nem consegui dormir depois da sua proposta de ontem. Não queria que pensasse que sou resistente, mas … quero que entenda o meu ponto de vista e não estou disposto a negociar – casar agora nem pensar!

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Ana Helena Reis

Ana Helena Reis é paulistana, pesquisadora e empresária, com extensa produção de textos acadêmicos. Em 2019 começou a se dedicar à escrita literária e à ilustração de seus textos em prosa: contos, crônicas e resenhas, relacionados a fatos e situações do cotidiano. Publica em seu blog, Pincel de Crônicas, em coletâneas, e revistas eletrônicas. Em 2024 lançou seu primeiro livro solo, Conto ou não conto, pela editora Paraquedas/Claraboia, e, em Espanhol, Inquietudes Crónicas, pela editora Caravana/Caburé.

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